Uma Boa Leitura  

Olhe aqui, Mr. Buster, por Vinícius de Morais

por Vinícius de Morais

Olhe aqui, Mr. Buster: está muito certo
Que o Sr. tenha um apartamento em Park Avenue e uma casa em Beverly Hills.
Está muito certo que em seu apartamento de Park Avenue
O Sr. tenha um caco de friso do Partenon, e no quintal de sua casa em Hollywood
Um poço de petróleo trabalhando de dia para lhe dar dinheiro e de noite para lhe dar insônia
Está muito certo que em ambas as residências
O Sr. tenha geladeiras gigantescas capazes de conservar o seu preconceito racial
Por muitos anos a vir, e vacuum-cleaners com mais chupo
Que um beijo de Marilyn Monroe, e máquinas de lavar
Capazes de apagar a mancha de seu desgosto de ter posto tanto dinheiro em vão na guerra da
Coréia.
Está certo que em sua mesa as torradas saltem nervosamente de torradeiras automáticas
E suas portas se abram com célula fotelétrica. Está muito certo
Que o Sr. tenha cinema em casa para os meninos verem filmes de mocinho
Isto sem falar nos quatro aparelhos de televisão e na fabulosa hi-fi
Com alto-falantes espalhados por todos os andares, inclusive nos banheiros.
Está muito certo que a Sra. Buster seja citada uma vez por mês por Elsa Maxwell
E tenha dois psiquiatras: um em Nova York, outro em Los Angeles, para as duas “estações” do ano.
Está tudo muito certo, Mr. Buster – o Sr. ainda acabará governador do seu estado
E sem dúvida presidente de muitas companhias de petróleo, aço e consciências enlatadas.
Mas me diga uma coisa, Mr. Buster
Me diga sinceramente uma coisa, Mr. Buster:
O Sr. sabe lá o que é um choro de Pixinguinha?
O Sr. sabe lá o que é ter uma jabuticabeira no quintal?
O Sr. sabe lá o que é torcer pelo Botafogo?

Uma Boa Leitura  

Motivo, por Cecília Meireles

por Cecília Meireles

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
– não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
– mais nada.

Uma Boa Leitura  

Sentimento do Mundo, por Carlos Drummond de Andrade

por Carlos Drummond de Andrade

Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo,

mas estou cheio de escravos,

minhas lembranças escorrem e o corpo transige

na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu estará morto e saqueado,

eu mesmo estarei morto, morto meu desejo, morto

o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram que havia uma guerra

e era necessário trazer fogo e alimento.

Sinto-me disperso, anterior a fronteiras,

humildemente vos peço que me perdoeis.

Quando os corpos passarem, eu ficarei sozinho

desafiando a recordação do sineiro,

da viúva e do microscopista que habitavam a barraca

e não foram encontrados ao amanhecer

esse amanhecer mais que a noite.