Uma Boa Leitura  

Estrada, por Manuel Bandeira

leitura, poema, posia, crônica, texto

por Manuel Bandeira

Esta estrada onde moro, entre duas voltas do caminho,
Interessa mais que uma avenida urbana.
Nas cidades todas as pessoas se parecem.
Todo o mundo é igual. todo o mundo é toda a gente.
Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a sua alma.
Cada criatura é única.
Até os cães.
Estes cães da roça parecem homens de negócios:
Andam sempre preocupados.
E quanta gente vem e vai!
E tudo tem aquele caráter impressivo que faz meditar:
Enterro a pé ou a carrocinha de leite puxada por um bodezinho
manhoso.
Nem falta o murmúrio da água, para sugerir, pela voz dos símbolos,
Que a vida passa! que a vida passa!
E que a mocidade vai acabar.

Uma Boa Leitura  

Geometria dos Ventos, por Raquel de Queiroz

por Raquel de Queiroz

Eis que temos aqui a Poesia,
a grande Poesia.
Que não oferece signos
nem linguagem específica, não respeita
sequer os limites do idioma. Ela flui, como um rio.
como o sangue nas artérias,
tão espontânea que nem se sabe como foi escrita.
E ao mesmo tempo tão elaborada –
feito uma flor na sua perfeição minuciosa,
um cristal que se arranca da terra
já dentro da geometria impecável
da sua lapidação.
Onde se conta uma história,
onde se vive um delírio; onde a condição humana exacerba,
até à fronteira da loucura,
junto com Vincent e os seus girassóis de fogo,
à sombra de Eva Braun, envolta no mistério ao mesmo tempo
fácil e insolúvel da sua tragédia.
Sim, é o encontro com a Poesia.

Uma Boa Leitura  

Soneto de Orfeu, por Vinícius de Moraes

por Vinícius de Moraes

São demais os perigos dessa vida
Para quem tem paixão, principalmente
Quando uma lua surge de repente
E se deixa no céu, como esquecida

E se ao luar, que atua desvairado
Vem unir-se uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher

Uma mulher que é feita de música
Luar e sentimento, e que a vida
Não quer, de tão perfeita

Uma mulher que é como a própria lua:
Tão linda que só espalha sofrimento,
Tão cheia de pudor que vive nua.

Uma Boa Leitura  

Fragmento 4, por José Saramago

por José Saramago

O interrogatório do homem que saiu de casa depois da hora de recolher começou há quinze dias e ainda não acabou

Os inquiridores fazem uma pergunta em cada sessenta minutos vinte quatro por dia e exigem cinqüenta e nove respostas diferentes para cada uma

É um método novo

Acreditam que é impossível não estar a resposta verdadeira entre as cinqüenta e nove que foram dadas

E contam com a perspicácia do ordenador para descobrir qual delas seja e a sua ligação com as outras

Há quinze dias que o homem não dorme nem dormirá enquanto o ordenador não disser não preciso de mais ou o médico não preciso de tanto

Caso em que terá o seu definitivo sono

O homem que saiu de casa depois da hora de recolher não dirá por que saiu

E os inquiridores não sabem que a verdade está na sexagésima resposta

Entretanto a tortura continua até que o médico declare

Não vale a pena