Uma Boa Leitura  

Fragmento 4, por José Saramago

por José Saramago

O interrogatório do homem que saiu de casa depois da hora de recolher começou há quinze dias e ainda não acabou

Os inquiridores fazem uma pergunta em cada sessenta minutos vinte quatro por dia e exigem cinqüenta e nove respostas diferentes para cada uma

É um método novo

Acreditam que é impossível não estar a resposta verdadeira entre as cinqüenta e nove que foram dadas

E contam com a perspicácia do ordenador para descobrir qual delas seja e a sua ligação com as outras

Há quinze dias que o homem não dorme nem dormirá enquanto o ordenador não disser não preciso de mais ou o médico não preciso de tanto

Caso em que terá o seu definitivo sono

O homem que saiu de casa depois da hora de recolher não dirá por que saiu

E os inquiridores não sabem que a verdade está na sexagésima resposta

Entretanto a tortura continua até que o médico declare

Não vale a pena

Uma Boa Leitura  

Tuas Mãos, por Pablo Neruda

por Pablo Neruda

Quando tuas mãos saem,
amada, para as minhas,
o que me trazem voando?
Por que se detiveram
em minha boca, súbitas,
e por que as reconheço
como se outrora então
as tivesse tocado,
como se antes de ser
houvessem percorrido
minha fronte e a cintura?

Sua maciez chegava
voando por sobre o tempo,
sobre o mar, sobre o fumo,
e sobre a primavera,
e quando colocaste
tuas mãos em meu peito,
reconheci essas asas
de paloma dourada,
reconheci essa argila
e a cor suave do trigo.

A minha vida toda
eu andei procurando-as.
Subi muitas escadas,
cruzei os recifes,
os trens me transportaram,
as águas me trouxeram,
e na pele das uvas
achei que te tocava.
De repente a madeira
me trouxe o teu contacto,
a amêndoa me anunciava
suavidades secretas,
até que as tuas mãos
envolveram meu peito
e ali como duas asas
repousaram da viagem.

Uma Boa Leitura  

Motivo, por Cecília Meireles

por Cecília Meireles

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
– não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
– mais nada.

Uma Boa Leitura  

Mãe, por Cora Coralina

por Cora Coralina

Renovadora e reveladora do mundo
A humanidade se renova no teu ventre.
Cria teus filhos,
não os entregues à creche.
Creche é fria, impessoal.
Nunca será um lar
para teu filho.
Ele, pequenino, precisa de ti.
Não o desligues da tua força maternal.

Que pretendes, mulher?
Independência, igualdade de condições…
Empregos fora do lar?
És superior àqueles
que procuras imitar.
Tens o dom divino
de ser mãe
Em ti está presente a humanidade.

Mulher, não te deixes castrar.
Serás um animal somente de prazer
e às vezes nem mais isso.
Frígida, bloqueada, teu orgulho te faz calar.
Tumultuada, fingindo ser o que não és.
Roendo o teu osso negro da amargura.