Uma Boa Leitura  

Idealismo, por Augusto dos Anjos

Um belo poema, para desejar uma ótima semana a todos os desordeiros. :)

por Augusto dos Anjos

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor da Humanidade é uma mentira.
É. E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra,
De Messalina e de Sardanapalo?!

Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
– Alavanca desviada do seu fulcro –

E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!

 

Uma Boa Leitura  

Um Sorriso, por Manuel Bandeira

Vinha caindo a tarde. Era um poente de agosto.

A sombra já enoitava as moutas. A umidade
Aveludava o musgo. E tanta suavidade
Havia, de fazer chorar nesse sol-posto.

A viração do oceano acariciava o rosto
Como incorpóreas mãos. Fosse mágoa ou saudade,
Tu olhavas, sem ver, os vales e a cidade.
– Foi então que senti sorrir o meu desgosto…

Ao fundo o mar batia a crista dos escolhos…
Depois o céu… e mar e céus azuis: dir-se-ia
Prolongarem a cor ingênua de teus olhos…

A paisagem ficou espiritualizada.
Tinha adquirido uma alma. E uma nova poesia
Desceu do céu, subiu do mar, cantou na estrada…

Uma Boa Leitura  

Destruição, por Carlos Drummond de Andrade



Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada. Ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.

Uma Boa Leitura  

A Lucidez Perigosa, por Clarice Lispector

 

Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise.

Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma, e não me alcanço.
Além do que:que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
– já me aconteceu antes.

Pois sei que
– em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade –
essa clareza de realidade
é um risco.

Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve
para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.