Tem certos dias em que eu penso em minha gente
E sinto assim todo o meu peito se apertar
Porque parece que acontece de repente
Como um desejo de eu viver sem me notar
Igual a como quando eu passo num subúrbio
Eu muito bem vindo de trem de algum lugar
E aí me dá como uma inveja dessa gente
Que vai em frente sem nem ter com quem contar
São casas simples com cadeiras na calçada
E na fachada escrito em cima que é um lar
Pela varanda flores tristes e baldias
Como a alegria que não tem onde encostar
E aí me dá uma tristeza no meu peito
Feito um despeito de eu não ter como lutar
E eu que não creio, peço a Deus por minha gente
É gente humilde, que vontade de chorar
Millôr Fernandes e o “Striptease” Secular
Poeminha de Louvor ao “Strip-tease” Secular, de Millôr Fernandes
Eu sou do tempo em que a mulher
Mostrar o tornozelo
Era um apelo!
Depois, já rapazinho, vi as primeiras pernas
De mulher
Sem saia;
Mas foi na praia!
A moda avança
A saia sobe mais
Mostra os joelhos
Infernais!
As fazendas
Com os anos
Se fazem mais leves
E surgem figurinhas
Em roupas transparentes
Pelas ruas:
Quase nuas.
E a mania do esporte
Trouxe o short.
O short amigo
Que trouxe consigo
O maiô de duas peças.
E logo, de audácia em audácia,
A natureza ganhando terreno
Sugeriu o biquíni,
O maiô de pequeno ficando mais pequeno
Não se sabendo mais
Até onde um corpo branco
Pode ficar moreno.
Deus,
A graça é imerecida,
Mas dai-me ainda
Uns aninhos de vida!
Nos Poços, por Caio Fernando Abreu
Primeiro você cai num poço.
Mas não é ruim cair num poço assim de repente?
No começo é. Mas você logo começa a curtir as pedras do poço. O limo do poço. A umidade do poço. A água do poço. A terra do poço. O cheiro do poço. O poço do poço. Mas não é ruim a gente ir entrando nos poços dos poços sem fim?
A gente não sente medo?
A gente sente um pouco de medo mas não dói.
A gente não morre?
A gente morre um pouco em cada poço.
E não dói?
Morrer não dói. Morrer é entrar noutra.
E depois: no fundo do poço do poço do poço do poço você vai descobrir quê.
Idealismo, por Augusto dos Anjos
Um belo poema, para desejar uma ótima semana a todos os desordeiros.
por Augusto dos Anjos
Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor da Humanidade é uma mentira.
É. E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.
O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra,
De Messalina e de Sardanapalo?!
Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
– Alavanca desviada do seu fulcro –
E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!