Uma Boa Leitura  

Sentimento do Mundo, por Carlos Drummond de Andrade

por Carlos Drummond de Andrade

Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo,

mas estou cheio de escravos,

minhas lembranças escorrem e o corpo transige

na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu estará morto e saqueado,

eu mesmo estarei morto, morto meu desejo, morto

o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram que havia uma guerra

e era necessário trazer fogo e alimento.

Sinto-me disperso, anterior a fronteiras,

humildemente vos peço que me perdoeis.

Quando os corpos passarem, eu ficarei sozinho

desafiando a recordação do sineiro,

da viúva e do microscopista que habitavam a barraca

e não foram encontrados ao amanhecer

esse amanhecer mais que a noite.

Uma Boa Leitura  

“A um ausente”, por Carlos Drummond de Andrade

Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste

Uma Boa Leitura  

Destruição, por Carlos Drummond de Andrade



Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada. Ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.